sábado, 8 de janeiro de 2022

 O Evangelho 

SEGUNDO O ESPIRITISMO

Por ALLAN KARDEC

 

Sumário Índice de referências bíblicas ............................... 13

Nota da editora.................................................... 17 

Explicação ............................................................... 19 

Prefácio ............................................................... 21 

Introdução ........................................................... 23 

I – Objetivo desta obra. 

II – Autoridade da Doutrina Espírita. Controle universal do ensino dos Espíritos. 

III – Notícias históricas. 

IV – Sócrates e Platão, precursores da idéia cristã e do Espiritismo. 

CAPÍTULO I – 

NÃO VIM DESTRUIR A LEI ......................... 58 

As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo: 1 a 7. – 

Aliança da Ciência e da Religião: 8. – 

Instruções dos Espíritos: A nova era: 9 a 11. 

CAPÍTULO II – 

MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO .......... 72 

A vida futura: 1 a 3. – 

A realeza de Jesus: 4. – 

O ponto de vista: 5 a 7. – 

Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrestre: 8.

CAPÍTULO III – 

HÁ MUITAS MORADAS NA CASA DE MEU PAI ........................................................ 82 

Diferentes estados da alma na erraticidade: 1 e 2. – 

Diferentes categorias de mundos habitados: 3 a 5. – 

Destinação da Terra. Causas das misérias humanas: 6 e 7. – 

Instruções dos Espíritos: Mundos inferiores e mundos superiores: 8 a 12. – 

Mundos de expiações e de provas: 13 a 15. – 

Mundos regeneradores: 16 a 18. – 

Progressão dos mundos: 19. 

CAPÍTULO IV – 

NINGUÉM PODERÁ VER O REINO DE DEUS SE NÃO NASCER DE NOVO ........................ 96 

Ressurreição e reencarnação: 1 a 17. – 

A reencarnação fortalece os laços de família, ao passo que a unicidade da existência os rompe: 18 a 23. 

Instruções dos Espíritos: Limites da encarnação: 24. – 

Necessidade da encarnação: 25 e 26. 

CAPÍTULO V – 

BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS............ 116 

Justiça das aflições: 1 a 3. – 

Causas atuais das aflições: 4 e 5. – 

Causas anteriores das aflições: 6 a 10. – 

Esquecimento do passado: 11. – 

Motivos de resignação: 12 e 13. – 

O suicídio e a loucura: 14 a 17. – 

Instruções dos Espíritos: Bem e mal sofrer: 18. – 

O mal e o remédio: 19.– 

A felicidade não é deste mundo: 20. – 

Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras: 21. – 

Se fosse um homem de bem, teria morrido: 22. – 

Os tormentos voluntários: 23. – 

A desgraça real: 24. – 

A melancolia: 25. – 

Provas voluntárias. O verdadeiro cilício: 26. – 

Dever-se-á pôr termo às provas do próximo?: 27. – 

Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança de cura?: 28. – 

Sacrifício da própria vida: 29 e 30. – 

Proveito dos sofrimentos para outrem: 31.

CAPÍTULO VI – 

O CRISTO CONSOLADOR ................... 154 

O jugo leve: 1 e 2. – 

Consolador prometido: 3 e 4. – 

Instruções dos Espíritos: Advento do Espírito de Verdade: 5 a 8. 

CAPÍTULO VII – 

BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO ..................................................... 162 

O que se deve entender por pobres de espírito: 1 e 2. – 

Aquele que se eleva será rebaixado: 3 a 6. – 

Mistérios ocultos aos doutos e aos prudentes: 7 a 10. – 

Instruções dos Espíritos: O orgulho e a humildade: 11 e 12. – 

Missão do homem inteligente na Terra: 13. 

CAPÍTULO VIII – 

BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM PURO O CORAÇÃO ......................................... 180 

Simplicidade e pureza de coração: 1 a 4. – 

Pecado por pensamentos. Adultério: 5 a 7. – 

Verdadeira pureza. Mãos não lavadas: 8 a 10. – 

Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a: 11 a 17. – 

Instruções dos Espíritos: Deixai que venham a mim as criancinhas: 18 e 19. – 

Bem-aventurados os que têm fechados os olhos: 20 e 21. 

CAPÍTULO IX – 

BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO BRANDOS E PACÍFICOS................................... 198 

Injúrias e violências: 1 a 5. – 

Instruções dos Espíritos: A afabilidade e a doçura: 6. – 

A paciência: 7. – 

Obediência e resignação: 8. – 

A cólera: 9 e 10. 

CAPÍTULO X – 

BEM-AVENTURADOS OS QUE SÃO MISERICORDIOSOS ........................................ 208 

Perdoai, para que Deus vos perdoe: 1 a 4. – 

Reconciliação com os adversários: 5 e 6. – 

O sacrifício mais agradável a Deus: 7 e 8. – 

O argueiro e a trave no olho: 9 e 10. – 

Não julgueis, para não serdes julgados. Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado: 11 a 13. – 

Instruções dos Espíritos: 

Perdão das ofensas: 14 e 15. – 

A indulgência: 16 a 18. – 

É permitido repreender os outros, notar as imperfeições de outrem, divulgar o mal de outrem?: 19 a 21. 

CAPÍTULO XI – 

AMAR O PRÓXIMO COMO A SI MESMO .... 226 

O mandamento maior. Fazermos aos outros o que queiramos que os outros nos façam. Parábola dos credores e dos devedores: 1 a 4. – 

Dai a César o que é de César: 5 a 7. – 

Instruções dos Espíritos: A lei de amor: 8 a 10. – O egoísmo: 11 e 12. – 

A fé e a caridade: 13. – 

Caridade para com os criminosos: 14. – 

Deve-se expor a vida por um malfeitor?: 15. 

CAPÍTULO XII – AMAI OS VOSSOS INIMIGOS ................ 244 

Retribuir o mal com o bem: 1 a 4. – 

Os inimigos desencarnados: 5 e 6. – 

Se alguém vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra: 7 e 8. – 

Instruções dos Espíritos: A vingança: 9. – 

O ódio: 10. – 

O duelo: 11 a 16. 

CAPÍTULO XIII – 

NÃO SAIBA A VOSSA MÃO ESQUERDA O QUE DÊ A VOSSA MÃO DIREITA .................... 262 

Fazer o bem sem ostentação: 1 a 3. – 

Os infortúnios ocultos: 4. – 

O óbolo da viúva: 5 e 6. – 

Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem esperar retribuição: 7 e 8. – 

Instruções dos Espíritos: A caridade material e a caridade moral: 9 e 10. – 

A beneficência: 11 a 16. – 

A piedade: 17. 

Os órfãos: 18. – 

Benefícios pagos com a ingratidão: 19. – 

Beneficência exclusiva: 20. 

CAPÍTULO XIV – 

HONRAI A VOSSO PAI E A VOSSA MÃE... 292 

Piedade filial: 1 a 4. – 

Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?: 5 a 7. – 

A parentela corporal e aparentela espiritual: 8. – 

Instruções dos Espíritos: A ingratidão dos filhos e os laços de família: 9. 

CAPÍTULO XV – 

FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO .. 306 

O de que precisa o Espírito para ser salvo. Parábola do bom samaritano: 1 a 3. – 

O mandamento maior: 4 e 5. – 

Necessidade da caridade, segundo S. Paulo: 6 e 7. – 

Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há salvação: 8 e 9. – 

Instruções dos Espíritos: Fora da caridade não há salvação: 10. 

CAPÍTULO XVI – 

NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON ....................................................... 318 

Salvação dos ricos: 1 e 2. – 

Preservar-se da avareza: 3. – 

Jesus em casa de Zaqueu: 4. – 

Parábola do mau rico: 5. – 

Parábola dos talentos: 6. – 

Utilidade providencial da riqueza. Provas da riqueza e da miséria: 7. – 

Desigualdade das riquezas: 8. – 

Instruções dos Espíritos: A verdadeira propriedade: 9 e 10. – 

Emprego da riqueza: 11 a 13. 

Desprendimento dos bens terrenos: 14. – 

Transmissão da riqueza: 15. 

CAPÍTULO XVII – 

SEDE PERFEITOS............................ 344 

Caracteres da perfeição: 1 e 2. – 

O homem de bem: 3. – 

Os bons espíritas: 4. – 

Parábola do semeador: 5 e 6. – 

Instruções dos Espíritos: O dever: 7. – 

A virtude: 8. – 

Os superiores e os inferiores: 9. – 

O homem no mundo: 10. – 

Cuidar do corpo e do espírito: 11. 

CAPÍTULO XVIII – 

MUITOS OS CHAMADOS, POUCOS OS ESCOLHIDOS ................................................ 364 

Parábola do festim de bodas: 1 e 2. – 

A porta estreita: 3 a 5. – 

Nem todos os que dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus: 6 a 9. – 

Muito se pedirá àquele que muito recebeu: 10 a 12. – 

Instruções dos Espíritos: Dar-se-á àquele que tem: 13 a 15. – 

Pelas suas obras é que se reconhece o cristão: 16.

CAPÍTULO XIX – 

A FÉ TRANSPORTA MONTANHAS ....... 382 

Poder da fé: 1 a 5. – 

A fé religiosa. Condição da fé inabalável: 6 e 7. – 

Parábola da figueira que secou: 8 a 10. – 

Instruções dos Espíritos: A fé: mãe da esperança e da caridade: 11. – 

A fé humana e a divina: 12. 

CAPÍTULO XX – 

OS TRABALHADORES DA ÚLTIMA HORA.. 394 

Instruções dos Espíritos: Os últimos serão os primeiros: 1 a 3. – 

Missão dos espíritas: 4. – 

Os obreiros do Senhor: 5. 

CAPÍTULO XXI – 

HAVERÁ FALSOS CRISTOS E FALSOS PROFETAS .................................................. 404 

Conhece-se a árvore pelo fruto: 1 a 3. – 

Missão dos profetas: 4. – 

Prodígios dos falsos profetas: 5. – 

Não creais em todos os Espíritos: 6 e 7. – 

Instruções dos Espíritos: 

Os falsos profetas: 8. – 

Caracteres do verdadeiro profeta: 9. – 

Os falsos profetas da erraticidade: 10. – 

Jeremias e os falsos profetas: 11. 

CAPÍTULO XXII – 

NÃO SEPAREIS O QUE DEUS JUNTOU ... 420 

Indissolubilidade do casamento: l a 4. – 

O divórcio: 5. 

CAPÍTULO XXIII – 

ESTRANHA MORAL ......................... 426 

Odiar os pais: 1 a 3. – 

Abandonar pai, mãe e filhos: 4 a 6. – 

Deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos: 7 e 8. – 

Não vim trazer a paz, mas, a divisão: 9 a 18. 

CAPÍTULO XXIV – 

NÃO PONHAIS A CANDEIA DEBAIXO DO ALQUEIRE ............................................... 440 

Candeia sob o alqueire. Por que fala Jesus por parábolas: 1 a 7. – 

Não vades ter com os gentios: 8 a 10. – 

Não são os que gozam saúde que precisam de médico: 11 e 12. – 

Coragem da fé: 13 a 16. – 

Carregar sua cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á: 17 a 19.

CAPÍTULO XXV – BUSCAI E ACHAREIS ....................... 454 

Ajuda-te a ti mesmo, que o céu te ajudará: 1 a 5. – 

Observai os pássaros do céu: 6 a 8. – 

Não vos afadigueis pela posse do ouro: 9 a 11. 

CAPÍTULO XXVI – 

DAI GRATUITAMENTE O QUE GRATUITAMENTE RECEBESTES ........................ 464 

Dom de curar: 1 e 2. – 

Preces pagas: 3 e 4. – 

Mercadores expulsos do templo: 5 e 6. – 

Mediunidade gratuita: 7 a 10. 

CAPÍTULO XXVII – 

PEDI E OBTEREIS ......................... 472 

Qualidades da prece: 1 a 4. – 

Eficácia da prece: 5 a 8. – 

Ação da prece. Transmissão do pensamento: 9 a 15. – 

Preces inteligíveis: 16 e 17. – 

Da prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores: 18 a 21. – 

Instruções dos Espíritos: Maneira de orar: 22. – 

Felicidade que a prece proporciona: 23. 

CAPÍTULO XXVIII – 

COLETÂNEA DE PRECES ESPÍRITAS .. 492 

Preâmbulo: 1. I – 

PRECES GERAIS ............................................... 495 

Oração dominical: 2 e 3. – 

Reuniões espíritas: 4 a 7. – 

Para os médiuns: 8 a 10. 

II – PRECES POR AQUELE MESMO QUE ORA ............... 511

 Aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores: 11 a 14. – 

Para afastar os maus Espíritos: 15 a 17. – 

Para pedir a corrigenda de um defeito: 18 e 19. – 

Para pedir a força de resistir a uma tentação: 20 e 21. – 

Ação de graças pela vitória alcançada sobre uma tentação: 22 e 23. – 

Para pedir um conselho: 24 e 25. – 

Nas aflições da vida: 26 e 27. – 

Ação de graças por um favor obtido: 28 e 29. – 

Ato de submissão e de resignação: 30 a 33. – 

Num perigo iminente: 34 e 35. – 

Ação de graças por haver escapado a um perigo: 36 e 37. – 

À hora de dormir: 38 e 39. – 

Prevendo próxima a morte: 40 e 41. III – 

PRECES POR OUTREM ...................................... 529 

Por alguém que esteja em aflição: 42 e 43. – 

Ação de graças por um benefício concedido a outrem: 44 e 45. – 

Pelos nossos inimigos e pelos que nos querem mal: 46 e 47. – 

Ação de graças pelo bem concedido aos nossos inimigos: 48 e 49. – 

Pelos inimigos do Espiritismo: 50 a 52. – 

Por uma criança que acaba de nascer: 53 a 56. – 

Por um agonizante: 57 e 58. 

IV – PRECES PELOS QUE JÁ NÃO SÃO DA TERRA ......... 539 

Por alguém que acaba de morrer: 59 a 61. – 

Pelas pessoas a quem tivemos afeição: 62 e 63. – 

Pelas almas sofredoras que pedem preces: 64 a 66. – 

Por um inimigo que morreu: 67 e 68. – 

Por um criminoso: 69 e 70. – 

Por um suicida: 71 e 72. – 

Pelos Espíritos penitentes: 73 e 74. – 

Pelos Espíritos endurecidos: 75 e 76.

V – PRECES PELOS DOENTES E PELOS OBSIDIADOS .... 554 

Pelos doentes: 77 a 80. – 

Pelos obsidiados: 81 a 84. 

Índice de referências bíblicas 

Prefácio 

Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos Céus, qual imenso exército que se movimenta ao receber as ordens do seu comando, espalham-se por toda a superfície da Terra e, semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar os caminhos e abrir os olhos aos cegos. Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos. As grandes vozes do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos anjos se lhes associam. Nós vos convidamos, a vós homens, para o divino concerto. Tomai da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado, elas se estendam e repercutam de um extremo a outro do Universo. Homens, irmãos a quem amamos, aqui estamos junto de vós. Amai-vos, também, uns aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que está no Céu: Senhor! Senhor!... e podereis entrar no reino dos Céus. 

O ESPÍRITO DE VERDADE 

Nota – A instrução acima, transmitida por via mediúnica, resume a um tempo o verdadeiro caráter do Espiritismo e a finalidade desta obra; por isso foi colocada aqui como prefácio.


Introdução 

OBJETIVO DESTA OBRA 

Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a última, porém, conservou-se constantemente inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se originaram das questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua própria condenação, visto que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que exige de cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, constitui aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstâncias da vida privada e da vida pública, o princípio básico de todas as relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. É, finalmente e acima de tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do véu que nos oculta a vida futura. Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra. Toda a gente admira a moral evangélica; todos lhe proclamam a sublimidade e a necessidade; muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados no que ouviram dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais. Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a compreendem e lhe sabem deduzir as conseqüências. A razão está, por muito, na dificuldade que apresenta o entendimento do Evangelho que, para o maior número dos seus leitores, é ininteligível. A forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem que a maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como lêem as preces, sem as entender, isto é, sem proveito. Passam-lhes despercebidos os preceitos morais, disseminados aqui e ali, intercalados na massa das narrativas. Impossível, então, apanhar-se-lhes o conjunto e tomá-los para objeto de leitura e meditações especiais. É certo que tratados já se hão escrito de moral evangélica; mas, o arranjo em moderno estilo literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo, lhe constitui o encanto e a autenticidade. Outro tanto cabe dizer-se das máximas destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial. Desde logo, já não passam de aforismos, privados de uma parte do seu valor e interesse, pela ausência dos acessórios e das circunstâncias em que foram enunciadas.

Para obviar a esses inconvenientes, reunimos, nesta obra, os artigos que podem compor, a bem dizer, um código de moral universal, sem distinção de culto. Nas citações, conservamos o que é útil ao desenvolvimento da idéia, pondo de lado unicamente o que se não prende ao assunto. Além disso, respeitamos escrupulosamente a tradução de Sacy, assim como a divisão em versículos. Em vez, porém, de nos atermos a uma ordem cronológica impossível e sem vantagem real para o caso, grupamos e classificamos metodicamente as máximas, segundo as respectivas naturezas, de modo que decorram umas das outras, tanto quanto possível. A indicação dos números de ordem dos capítulos e dos versículos permite se recorra à classificação vulgar, em sendo oportuno. Esse, entretanto, seria um trabalho material que, por si só, apenas teria secundária utilidade. O essencial era pô- -lo ao alcance de todos, mediante a explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas as conseqüências, tendo em vista a aplicação dos ensinos a todas as condições da vida. Foi o que tentamos fazer, com a ajuda dos bons Espíritos que nos assistem. Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral só são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o puderam reconhecer os que o têm estudado seriamente e como todos, mais tarde, ainda melhor o reconhecerão. O Espiritismo se nos depara por toda a parte na antigüidade e nas diferentes épocas da Humanidade. Por toda a parte se lhe descobrem os vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por que, ao mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz não menos viva sobre os mistérios do passado. Como complemento de cada preceito, acrescentamos algumas instruções escolhidas, dentre as que os Espíritos ditaram em vários países e por diferentes médiuns. Se elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma influência pessoal ou a do meio, enquanto a diversidade de origens prova que os Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a esse respeito goza de qualquer privilégio.1 Esta obra é para uso de todos. Dela podem todos haurir os meios de confortar com a moral do Cristo o respectivo proceder. Aos espíritas oferece aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às relações estabelecidas, doravante e permanentemente, entre os homens e o mundo invisível, a lei evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a todas as nações, já não será letra morta, porque cada um a compreenderá e se verá incessantemente compelido a pô-la em prática, a conselho de seus guias espirituais. As instruções que promanam dos Espíritos são verdadeiramente as vozes do céu que vêm esclarecer os homens e convidá-los à prática do Evangelho.

1 Houvéramos, sem dúvida, podido apresentar, sobre cada assunto, maior número de comunicações obtidas numa porção de outras cidades e centros, além das que citamos. Tivemos, porém, de evitar a monotonia das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às que, tanto pelo fundo quanto pela forma, se enquadravam melhor no plano desta obra, reservando para publicações ulteriores as que não puderam caber aqui.

II – AUTORIDADE DA DOUTRINA ESPÍRITA 

CONTROLE UNIVERSAL DO ENSINO DOS ESPÍRITOS 

Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo. Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu, pois, os Espíritos de levá-la de um pólo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem conferir a ninguém o privilégio de 

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Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. Na maioria dos casos, não os designamos a pedido deles próprios e, assim sendo, não convinha fazer exceções. Ao demais, os nomes dos médiuns nenhum valor teriam acrescentado à obra dos Espíritos. Mencioná-los mais não fora, então, do que satisfazer ao amor-próprio, coisa a que os médiuns verdadeiramente sérios nenhuma importância ligam. Compreendem eles que, por ser meramente passivo o papel que lhes toca, o valor das comunicações em nada lhes exalça o mérito pessoal; e que seria pueril envaidecerem-se de um trabalho de inteligência ao qual é apenas mecânico o concurso que prestam.

lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e para todos. Ao demais, pode fazer-se que desapareça um homem; mas não se pode fazer que desapareçam as coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem queimar os Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina não deixaria de conservar-se inexaurível, pela razão mesma de não estar na Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se nela. Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir. São, pois, os próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os lados. Se tivesse havido unicamente um intérprete, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que fosse a classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido objeto das prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado, ao passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O Espiritismo não tem nacionalidade e não faz parte de nenhum culto existente; nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus parentes e amigos de além-túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá-las.

Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação. Enquanto a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da imprensa, levaria séculos para chegar ao conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios e transmitindo-os aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme o malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos. Não é essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional posição. Ela lhe faculta inatacável garantia contra todos os cismas que pudessem provir, seja da ambição de alguns, seja das contradições de certos Espíritos. Tais contradições, não há negar, são um escolho; mas que traz consigo o remédio, ao lado do mal. Sabe-se que os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade; que nem a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares mais não sabem do que muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e sofômanos, que julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por verdades as suas idéias; enfim, que só os Espíritos da categoria mais elevada, os que já estão completamente desmaterializados, se encontram despidos das idéias e preconceitos terrenos; mas, também é sabido que os Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes que lhes não pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação a tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas. O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de certas pessoas e das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões como juízes únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em face do que digam os Espíritos, que são os primeiros a nos fornecer os meios de consegui-lo. A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência. Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares. Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que, quando um princípio novo tem de ser enunciado, isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo. Se, portanto, aprouver a um Espírito formular um sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas idéias e com exclusão da verdade, pode ter-se a certeza de que tal sistema conservar-se-á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas de todas as partes, conforme os múltiplos exemplos que já se conhecem. Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que surgiram na origem do Espiritismo, quando cada um explicava à sua maneira os fenômenos, e antes que se conhecessem as leis que regem as relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Essa a base em que nos apoiamos, quando formulamos um princípio da doutrina. Não é porque esteja de acordo com as nossas idéias que o temos por verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a ninguém dizemos: “Crede em tal coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos.” A nossa opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto não nos considerarmos mais infalível do que qualquer outro. Também não é porque um princípio nos foi ensinado que, para nós, ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância. Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condições de observar sobre que princípio se estabelece a concordância. Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará em novos campos que o Espiritismo terá de explorar. Porque, estudando atentamente as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro, reconhecemos, pela natureza toda especial das revelações, que ele tende a entrar por um novo caminho e que lhe chegou o momento de dar um passo para diante. Essas revelações, feitas muitas vezes com palavras veladas, hão freqüentemente passado despercebidas a muitos dos que as obtiveram. Outros julgaram-se os únicos a possuí-las. Tomadas insuladamente, elas, para nós, nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade, cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse movimento geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos nossos guias espirituais, é que nos auxilia a julgar da oportunidade de fazermos ou não alguma coisa.

Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns foi que em toda a parte todos receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros contêm. Se de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê-la, já de há muito haveriam aquelas obras experimentado a sorte de todas as concepções fantásticas. Nem mesmo o apoio da imprensa as salvaria do naufrágio, ao passo que, privadas como se viram desse apoio, não deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente. É que tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também sobrepujou o malquerer dos homens. Assim sucederá a todas as idéias que, emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a prova desse confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar. Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro em sentido contrário; suponhamos mesmo que, com intenção hostil, objetivando desacreditar a doutrina, a malevolência suscitasse comunicações apócrifas; que influência poderiam exercer tais escritos, desde que de todos os lados os desmentissem os Espíritos? É com a adesão destes que se deve garantir aquele que queira lançar, em seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, medeia a distância que vai da unidade ao infinito. Que poderão conseguir os argumentos dos detratores, sobre a opinião das massas, quando milhões de vozes amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos do Universo e no seio das famílias, a infirmá-los? A esse respeito já não foi a teoria confirmada pela experiência? Que é feito das inúmeras publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo? Qual a que, sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a questão desse ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um contou consigo, sem contar com os Espíritos. O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo à vontade. Quem quer que tentasse desviá-lo do seu providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de que os Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão cair por terra qualquer modificação que se divorcie da verdade. De tudo isso ressalta uma verdade capital: a de que aquele que quisesse opor-se à corrente de idéias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar uma pequena perturbação local e momentânea; nunca, porém, dominar o conjunto, mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro. Também ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos ainda não elucidados da Doutrina não constituirão lei, enquanto essas instruções permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte, ser aceitas senão sob todas as reservas e a título de esclarecimento. Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se julgue conveniente publicá-las, importa não as apresentar senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém, carecendo sempre de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida. Com extrema sabedoria procedem os Espíritos superiores em suas revelações. Não atacam as grandes questões da Doutrina senão gradualmente, à medida que a inteligência se mostra apta a compreender verdade de ordem mais elevada e quando as circunstâncias se revelam propícias à emissão de uma idéia nova. Por isso é que logo de princípio não disseram tudo, e tudo ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos muito afoitos, que querem os frutos antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo pretender adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a verdade, a tudo respondem; daí vem que, sobre todas as questões prematuras, há sempre respostas contraditórias. Os princípios acima não resultam de uma teoria pessoal: são conseqüência forçada das condições em que os Espíritos se manifestam. É evidente que, se um Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário algures, a presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria tão ilógico da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente ponderados, se não se sentem suficientemente esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo absoluto; declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que se aguarde a confirmação.

Por grande, bela e justa que seja uma idéia, impossível é que desde o primeiro momento congregue todas as opiniões. Os conflitos que daí decorrem são conseqüência inevitável do movimento que se opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e convém se produzam desde logo, para que as idéias falsas prontamente sejam postas de lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem qualquer temor podem ficar perfeitamente tranqüilos: todas as pretensões insuladas cairão, pela força mesma das coisas, diante do enorme e poderoso critério da concordância universal. Não será à opinião de um homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não será um homem, nem nós, nem qualquer outro que fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem quer que seja: será a universalidade dos Espíritos que se comunicam em toda a Terra, por ordem de Deus. Esse o caráter essencial da Doutrina Espírita; essa a sua força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei assentasse em base inamovível e por isso não lhe deu por fundamento a cabeça frágil de um só. Diante de tão poderoso areópago, onde não se conhecem corrilhos, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem nações, é que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições, todas as pretensões à supremacia individual; é que nos quebraríamos nós mesmos, se quiséssemos substituir os seus decretos soberanos pelas nossas próprias idéias. Só Ele decidirá todas as questões litigiosas, imporá silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de um homem ou de um Espírito? menos do que a gota d’água que se perde no oceano, menos do que a voz da criança que a tempestade abafa. A opinião universal, eis o juiz supremo, o que se pronuncia em última instância. Formam-na todas as opiniões individuais. Se uma destas é verdadeira, apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é falsa, não pode prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o orgulho humano. Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar todas as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão recebido a missão de se fazerem ouvir, para congregar os homens sob a mesma bandeira, uma vez que o campo se ache suficientemente lavrado. Enquanto isso se não dá, aquele que flutue entre dois sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos, nos diversos pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas prevalecerá.

III – NOTÍCIAS HISTÓRICAS 

Para bem se compreenderem algumas passagens dos Evangelhos, necessário se faz conhecer o valor de muitas palavras neles freqüentemente empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras foram com freqüência mal-interpretadas, causando isso uma espécie de incerteza. A inteligência da significação delas explica, ao demais, o verdadeiro sentido de certas máximas que, à primeira vista, parecem singulares. Escribas. – Nome dado, a princípio, aos secretários dos reis de Judá e a certos intendentes dos exércitos judeus. Mais tarde, foi aplicado especialmente aos doutores que ensinavam a lei de Moisés e a interpretavam para o povo. Faziam causa comum com os fariseus, de cujos princípios partilhavam, bem como da antipatia que aqueles votavam aos inovadores. Daí o envolvê-los Jesus na reprovação que lançava aos fariseus. Essênios ou esseus. – Também seita judia fundada cerca do ano 150 antes de Jesus-Cristo, ao tempo dos macabeus, e cujos membros, habitando uma espécie de mosteiros, formavam entre si uma como associação moral e religiosa. Distinguiam-se pelos costumes brandos e por austeras virtudes, ensinavam o amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra, punham em comunhão os seus bens e se entregavam à agricultura. Contrários aos saduceus sensuais, que negavam a imortalidade; aos fariseus de rígidas práticas exteriores e de virtudes apenas aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas querelas que tornaram antagonistas aquelas duas outras seitas. Pelo gênero de vida que levavam, assemelhavam-se muito aos primeiros cristãos, e os princípios da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à comunidade. É certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada prova que se lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse respeito se escreveu.1 Fariseus (do hebreu parush, divisão, separação). – A tradição constituía parte importante da teologia dos judeus. Consistia numa compilação das interpretações sucessivamente dadas ao sentido das Escrituras e tornadas artigos de dogma. Constituía, entre os doutores, assunto de discussões intermináveis, as mais das vezes sobre simples questões de palavras ou de formas, no gênero das disputas teológicas e das sutilezas da escolástica da Idade Média. Daí nasceram diferentes seitas, cada uma das quais pretendia ter o monopólio da verdade, detestando-se umas às outras, como sói acontecer. Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus, que teve por chefe Hillel 2, doutor judeu nascido na Babilônia, fundador de uma escola célebre, onde se ensinava que só se devia depositar fé nas Escrituras. Sua origem remonta a 180 ou 200 anos antes de Jesus-Cristo. Os fariseus, em diversas épocas, foram perseguidos, especialmente sob Hircano – soberano pontífice e rei dos judeus –, Aristóbuloe Alexandre, rei da Síria. Este último, porém, lhes deferiu honras e restituiu os bens, de sorte que eles readquiriram o antigo poderio e o conservaram até à ruína de Jerusalém, no ano 70 da era cristã, época em que se lhes apagou o nome, em conseqüência da dispersão dos judeus. Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas. Servis cumpridores das práticas exteriores do culto e das cerimônias; cheios de um zelo ardente de proselitismo, inimigos dos inovadores, afetavam grande severidade de princípios; mas, sob as aparências de meticulosa devoção, ocultavam costumes dissolutos, muito orgulho e, acima de tudo, excessiva ânsia de dominação. Tinham a religião mais como meio de chegarem a seus fins, do que como objeto de fé sincera. Da virtude nada possuíam, além das exterioridades e da ostentação; entretanto, por umas e outras, exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos passavam por santas criaturas. Daí o serem muito poderosos em Jerusalém. Acreditavam, ou, pelo menos, fingiam acreditar na Providência, na imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos mortos. (Cap. IV, nº 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito, que vivifica, à letra, que mata, se aplicou, durante toda a sua missão, a lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encarniçados inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar contra ele o povo e eliminá-lo. Nazarenos. – Nome dado, na antiga lei, aos judeus que faziam voto, ou perpétuo ou temporário, de guardar perfeita pureza. Eles se comprometiam a observar a castidade, a abster-se de bebidas alcoólicas e a conservar a cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram nazarenos. Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros cristãos, por alusão a Jesus de Nazaré. Também foi essa a denominação de uma seita herética dos primeiros séculos da era cristã, a qual, do mesmo modo que os ebionitas, de quem adotava certos princípios, misturava as práticas do moisaísmo com os dogmas cristãos, seita essa que desapareceu no século quarto. Portageiros. – Eram os arrecadadores de baixa categoria, incumbidos principalmente da cobrança dos direitos de entrada nas cidades. Suas funções correspondiam mais ou menos à dos empregados de alfândega e recebedores dos direitos de barreira. Compartilhavam da repulsa que pesava sobre os publicanos em geral. Essa a razão por que, no Evangelho, se depara freqüentemente com a palavra publicano ao lado da expressão gente de má vida. Tal qualificação não implicava a de debochados ou vagabundos. Era um termo de desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente indigna de conviver com pessoas distintas. Publicanos. – Eram assim chamados, na antiga Roma, os cavalheiros arrendatários das taxas públicas, incumbidos da cobrança dos impostos e das rendas de toda espécie, quer em Roma mesma, quer nas outras partes do Império. Eram como os arrendatários gerais e arrematadores de taxas do antigo regímen na França e que ainda existem nalgumas regiões. Os riscos a que estavam sujeitos faziam que os olhos se fechassem para as riquezas que muitas vezes adquiriam e que, da parte de alguns, eram frutos de exações e de lucros escandalosos. O nome de publicano se estendeu mais tarde a todos os que superintendiam os dinheiros públicos e aos agentes subalternos. Hoje esse termo se emprega em sentido pejorativo, para designar os financistas e os agentes pouco escrupulosos de negócios. Diz-se por vezes: “Ávido como um publicano, rico como um publicano”, com referência a riquezas de mau quilate. De toda a dominação romana, o imposto foi o que os judeus mais dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou entre eles. Daí nasceram várias revoltas, fazendo-se do caso uma questão religiosa, por ser considerada contrária à Lei. Constituiu-se, mesmo, um partido poderoso, a cuja frente se pôs um certo Judá, apelidado o Gaulonita, tendo por princípio o não pagamento do imposto. Os judeus, pois, abominavam a este e, como conseqüência, a todos os que eram encarregados de arrecadá-lo, donde a aversão que votavam aos publicanos de todas as categorias, entre os quais podiam encontrar-se pessoas muito estimáveis, mas que, em virtude das suas funções, eram desprezadas, assim como os que com elas mantinham relações, os quais se viam atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque consideravam um comprometimento ter com eles intimidade. Saduceus. – Seita judia, que se formou por volta do ano 248 antes de Jesus-Cristo e cujo nome lhe veio do de Sadoc, seu fundador. Não criam na imortalidade, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e maus. Entretanto, criam em Deus; nada, porém, esperando após a morte, só o serviam tendo em vista recompensas temporais, ao que, segundo eles, se limitava a providência divina. Assim pensando, tinham a satisfação dos sentidos físicos por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras, atinham-se ao texto da lei antiga. Não admitiam a tradição, nem interpretações quaisquer. Colocavam as boas obras e a observância pura e simples da Lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como se vê, os materialistas, os deístas e os sensualistas da época. Seita pouco numerosa, mas que contava em seu seio importantes personagens e se tornou um partido político oposto constantemente aos fariseus. Samaritanos. – Após o cisma das dez tribos, Samaria se constituiu a capital do reino dissidente de Israel. Destruída e reconstruída várias vezes, tornou-se, sob os romanos, a cabeça da Samaria, uma das quatro divisões da Palestina. Herodes, chamado o Grande, a embelezou de suntuosos monumentos e, para lisonjear Augusto, lhe deu o nome de Augusta, em grego Sebaste. Os samaritanos estiveram quase constantemente em guerra com os reis de Judá. Aversão profunda, datando da época da separação, perpetuou-se entre os dois povos, que evitavam todas as relações recíprocas. Aqueles, para tornarem maior a cisão e não terem de vir a Jerusalém pela celebração das festas religiosas, construíram para si um templo particular e adotaram algumas reformas. Somente admitiam o Pentateuco, que continha a lei de Moisés, e rejeitavam todos os outros livros que a esse foram posteriormente anexados. Seus livros sagrados eram escritos em caracteres hebraicos da mais alta antigüidade. Para os judeus ortodoxos, eles eram heréticos e, portanto, desprezados, anatematizados e perseguidos. O antagonismo das duas nações tinha, pois, por fundamento único a divergência das opiniões religiosas; se bem fosse a mesma a origem das crenças de uma e outra. Eram os protestantes desse tempo. Ainda hoje se encontram samaritanos em algumas regiões do Levante, particularmente em Nablus e em Jafa. Observam a lei de Moisés com mais rigor que os outros judeus e só entre si contraem alianças. Sinagoga (do grego synagogê, assembléia, congregação). – Um único templo havia na Judéia, o de Salomão, em Jerusalém, onde se celebravam as grandes cerimônias do culto. Os judeus, todos os anos, lá iam em peregrinação para as festas principais, como as da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Por ocasião dessas festas é que Jesus também costumava ir lá. As outras cidades não possuíam templos, mas, apenas, sinagogas: edifícios onde os judeus se reuniam aos sábados, para fazer preces públicas, sob a chefia dos anciães, dos escribas, ou doutores da Lei. Nelas também se realizavam leituras dos livros sagrados, seguidas de explicações e comentários, atividades das quais qualquer pessoa podia participar. Por isso é que Jesus, sem ser sacerdote, ensinava aos sábados nas sinagogas. Desde a ruína de Jerusalém e a dispersão dos judeus, as sinagogas, nas cidades por eles habitadas, servem-lhes de templos para a celebração do culto. Terapeutas (do grego therapeutai, formado de therapeuein, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus, ou curadores). – Eram sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os essênios, cujos princípios adotavam, aplicando-se, como esses últimos, à prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também celibatários, votados à contemplação e vivendo vida solitária, constituíam uma verdadeira ordem religiosa. Fílon, filósofo judeu platônico, de Alexandria, foi o primeiro a falar dos terapeutas, considerando-os uma seita do judaísmo. Eusébio, S. Jerônimo e outros Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou fossem judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo. 

IV – SÓCRATES E PLATÃO, PRECURSORES DA IDÉIA CRISTÃ E DO ESPIRITISMO 

Do fato de haver Jesus conhecido a seita dos essênios, fora errôneo concluir-se que a sua doutrina hauriu-a ele na dessa seita e que, se houvera vivido noutro meio, teria professado outros princípios. As grandes idéias jamais irrompem de súbito. As que assentam sobre a verdade sempre têm precursores que lhes preparam parcialmente os caminhos. Depois, em chegando o tempo, envia Deus um homem com a missão de resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de reuni-los em corpo de doutrina. Desse modo, não surgindo bruscamente, a idéia, ao aparecer, encontra espíritos dispostos a aceitá-la. Tal o que se deu com a idéia cristã, que foi pressentida muitos séculos antes de Jesus e dos essênios, tendo por principais precursores Sócrates e Platão. Sócrates, como o Cristo, nada escreveu, ou, pelo menos, nenhum escrito deixou. Como o Cristo, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo, por haver atacado as crenças que encontrara e colocado a virtude real acima da hipocrisia e do simulacro das formas; por haver, numa palavra, combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus, a quem os fariseus acusavam de estar corrompendo o povo com os ensinamentos que lhe ministrava, também ele foi acusado, pelos fariseus do seu tempo, visto que sempre os houve em todas as épocas, por proclamar o dogma da unidade de Deus, da imortalidade da alma e da vida futura. Assim como a doutrina de Jesus só a conhecemos pelo que escreveram seus discípulos, da de Sócrates só temos conhecimento pelos escritos de seu discípulo Platão. Julgamos conveniente resumir aqui os pontos de maior relevo, para mostrar a concordância deles com os princípios do Cristianismo. Aos que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que não era pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo; que a de Jesus, mais completa e mais depurada do que aquela, nada tem que perder com a comparação; que a grandeza da missão divina do Cristo não pode ser diminuída; que, ao demais, trata-se de um fato da História, que a ninguém será possível apagar. O homem há chegado a um ponto em que a luz emerge por si mesma de sob o alqueire. Ele se acha maduro bastante para encará-la de frente; tanto pior para os que não ousem abrir os olhos. Chegou o tempo de se considerarem as coisas de modo amplo e elevado, não mais do ponto de vista mesquinho e acanhado dos interesses de seitas e de castas. Além disso, estas citações provarão que, se Sócrates e Platão pressentiram a idéia cristã, em seus escritos também se nos deparam os princípios fundamentais do Espiritismo.

RESUMO DA DOUTRINA DE SÓCRATES E DE PLATÃO 

I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida aos tipos primordiais das idéias do verdadeiro, do bem e do belo; separa-se deles, encarnando, e, recordando o seu passado, é mais ou menos atormentada pelo desejo de voltar a ele. Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o princípio inteligente e o princípio material. É, além disso, a doutrina da preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro mundo, a que aspira; da sua sobrevivência ao corpo; da sua saída do mundo espiritual, para encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após a morte. É, finalmente, o gérmen da doutrina dos Anjos decaídos. 

II. A alma se transvia e perturba, quando se serve do corpo para considerar qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse ébria, porque se prende a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao passo que, quando contempla a sua própria essência, dirige-se para o que é puro, eterno, imortal, e, sendo ela dessa natureza, permanece aí ligada, por tanto tempo quanto possa. Cessam então os seus transviamentos, pois que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chama sabedoria. Assim, ilude a si mesmo o homem que considera as coisas de modo terra-a-terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com justeza, tem de as ver do alto, isto é, do ponto de vista espiritual. Aquele, pois, que está de posse da verdadeira sabedoria, tem de isolar do corpo a alma, para ver com os olhos do Espírito. É o que ensina o Espiritismo. (Cap. II, nº 5.) 

III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se achar mergulhada nessa corrupção, nunca possuiremos o objeto dos nossos desejos: a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que nos achamos de cuidar dele. Ao demais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de mil tolices, de maneira que, com ele, impossível se nos torna ser ajuizados, sequer por um instante. Mas, se não nos é possível conhecer puramente coisa alguma, enquanto a alma nos está ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos então, lícito é esperá-lo, com homens igualmente libertos e conheceremos, por nós mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os verdadeiros filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo nenhum, temível. 

Está aí o princípio das faculdades da alma obscurecidas por motivo dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades depois da morte. Mas trata-se apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá com as almas impuras. (O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. II; 2ª Parte, cap. I.)

IV. A alma impura, nesse estado, se encontra oprimida e se vê de novo arrastada para o mundo visível, pelo horror do que é invisível e imaterial. Erra, então, diz-se, em torno dos monumentos e dos túmulos, junto aos quais já se têm visto tenebrosos fantasmas, quais devem ser as imagens das almas que deixaram o corpo sem estarem ainda inteiramente puras, que ainda conservam alguma coisa da forma material, o que faz que a vista humana possa percebê-las. Não são as almas dos bons; são, porém, as dos maus, que se vêem forçadas a vagar por esses lugares, onde arrastam consigo a pena da primeira vida que tiveram e onde continuam a vagar até que os apetites inerentes à forma material de que se revestiram as reconduzam a um corpo. Então, sem dúvida, retomam os mesmos costumes que durante a primeira vida constituíam objeto de suas predileções. Não somente o princípio da reencarnação se acha aí claramente expresso, mas também o estado das almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual o mostra o Espiritismo nas evocações. Mais ainda: no tópico acima se diz que a reencarnação num corpo material é conseqüência da impureza da alma, enquanto as almas purificadas se encontram isentas de reencarnar. Outra coisa não diz o Espiritismo, acrescentando apenas que a alma, que boas resoluções tomou na erraticidade e que possui conhecimentos adquiridos, traz, ao renascer, menos defeitos, mais virtudes e idéias intuitivas do que tinha na sua existência precedente. Assim, cada existência lhe marca um progresso intelectual e moral. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte: Exemplos.) 

V. Após a nossa morte, o gênio (daimon, demônio), que nos fora designado durante a vida, leva-nos a um lugar onde se reúnem todos os que têm de ser conduzidos ao Hades, para serem julgados. As almas, depois de haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida em múltiplos e longos períodos. É a doutrina dos Anjos guardiães, ou Espíritos protetores, e das reencarnações sucessivas, em seguida a intervalos mais ou menos longos de erraticidade. 

VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; constituem o laço que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a divindade em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os deuses entram em comércio e se entretêm com ele, quer durante a vigília, quer durante o sono. A palavra daimon, da qual fizeram o termo demônio, não era, na antigüidade, tomada à má parte, como nos tempos modernos. Não designava exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos, em geral, dentre os quais se destacavam os Espíritos superiores, chamados deuses, e os menos elevados, ou demônios propriamente ditos, que comunicavam diretamente com os homens. Também o Espiritismo diz que os Espíritos povoam o espaço; que Deus só se comunica com os homens por intermédio dos Espíritos puros, que são os incumbidos de lhe transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam com eles durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra demônio, a palavra Espírito e tereis a doutrina espírita; ponde a palavra anjo e tereis a doutrina cristã. 

VII. A preocupação constante do filósofo (tal como o compreendiam Sócrates e Platão) é a de tomar o maior cuidado com a alma, menos pelo que respeita a esta vida, que não dura mais que um instante, do que tendo em vista a eternidade. Desde que a alma é imortal, não será prudente viver visando à eternidade? O Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa. 

VIII. Se a alma é imaterial, tem de passar, após essa vida, a um mundo igualmente invisível e imaterial, do mesmo modo que o corpo, decompondo-se, volta à matéria. Muito importa, no entanto, distinguir bem a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de ciência e pensamentos, da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais, que a impedem de elevar-se para o divino e a retêm nos lugares da sua estada na Terra. Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os diferentes graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade de situação que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O que eles diziam, por intuição, o Espiritismo o prova com os inúmeros exemplos que nos põe sob as vistas. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte.) 

IX. Se a morte fosse a dissolução completa do homem, muito ganhariam com a morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do corpo, da alma e dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos estranhos, mas com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar tranqüilamente a hora da sua partida para o outro mundo. Equivale isso a dizer que o materialismo, com o proclamar para depois da morte o nada, anula toda responsabilidade moral ulterior, sendo, conseguintemente, um incentivo para o mal; que o mau tem tudo a ganhar do nada. Somente o homem que se despojou dos vícios e se enriqueceu de virtudes, pode esperar com tranqüilidade o despertar na outra vida. Por meio de exemplos, que todos os dias nos apresenta, o Espiritismo mostra quão penoso é, para o mau, o passar desta à outra vida, a entrada na vida futura. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte, cap. I.) 

X. O corpo conserva bem impressos os vestígios dos cuidados de que foi objeto e dos acidentes que sofreu. Dá-se o mesmo com a alma. Quando despida do corpo, ela guarda, evidentes, os traços do seu caráter, de suas afeições e as marcas que lhe deixaram todos os atos de sua vida. Assim, a maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com a alma carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux, nem Górgias podereis provar que devamos levar outra vida que nos seja útil quando estejamos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única que permanece inabalável é a de que mais vale receber do que cometer uma injustiça e que, acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas de ser homem de bem. (Colóquios de Sócrates com seus discípulos, na prisão.) Depara-se-nos aqui outro ponto capital, confirmado hoje pela experiência: o de que a alma não depurada conserva as idéias, as tendências, o caráter e as paixões que teve na Terra. Não é inteiramente cristã esta máxima: mais vale receber do que cometer uma injustiça? O mesmo pensamento exprimiu Jesus, usando desta figura: “Se alguém vos bater numa face, apresentai-lhe a outra.” (Cap. XII, nos 7 e 8.)

XI. De duas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou é passagem da alma para outro lugar. Se tudo tem de extinguir-se, a morte será como uma dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência de nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada, a passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a de encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria examinar de perto os habitantes dessa outra morada e distinguir lá, como aqui, os que são dignos dos que se julgam tais e não o são. Mas, é tempo de nos separarmos, eu para morrer, vós para viverdes. (Sócrates aos seus juízes.) Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que continuam as relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira que a morte não é nem uma interrupção, nem a cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade. Houvessem Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo difundiu quinhentos anos mais tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não teriam falado de outro modo. Não há nisso, entretanto, o que surpreenda, se considerarmos que as grandes verdades são eternas e que os Espíritos adiantados hão de tê-las conhecido antes de virem à Terra, para onde as trouxeram; que Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles tempos bem podem, depois, ter sido dos que secundaram o Cristo na sua missão divina, escolhidos para esse fim precisamente por se acharem, mais do que outros, em condições de lhe compreenderem as sublimes lições; que, finalmente, pode dar-se façam eles agora parte da plêiade dos Espíritos encarregados de ensinar aos homens as mesmas verdades. 

XII. Nunca se deve retribuir com outra uma injustiça, nem fazer mal a ninguém, seja qual for o dano que nos hajam causado. Poucos, no entanto, serão os que admitam esse princípio, e os que se desentenderem a tal respeito nada mais farão, sem dúvida, do que se votarem uns aos outros mútuo desprezo. Não está aí o princípio de caridade, que prescreve não se retribua o mal com o mal e se perdoe aos inimigos? 

XIII. É pelos frutos que se conhece a árvore. Toda ação deve ser qualificada pelo que produz: qualificá-la de má, quando dela provenha mal; de boa, quando dê origem ao bem. Esta máxima: “Pelos frutos é que se conhece a árvore”, se encontra muitas vezes repetida textualmente no Evangelho. 

XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama a si mesmo, nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é ainda mais estranha do que o que lhe pertence. (Cap. XVI.) 

XV. As mais belas preces e os mais belos sacrifícios prazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa que faz esforços por se lhe assemelhar. Grave coisa fora que os deuses dispensassem mais atenção às nossas oferendas, do que à nossa alma; se tal se desse, poderiam os mais culpados conseguir que eles se lhes tornassem propícios. Mas, não: verdadeiramente justos e retos só o são os que, por suas palavras e atos, cumprem seus deveres para com os deuses e para com os homens. (Cap. X, nos 7 e 8.) 

XVI. Chamo homem vicioso a esse amante vulgar, que mais ama o corpo do que a alma. O amor está por toda parte em a Natureza, que nos convida ao exercício da nossa inteligência; até no movimento dos astros o encontramos. É o amor que orna a Natureza de seus ricos tapetes; ele se enfeita e fixa morada onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o amor que dá paz aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono à dor. O amor, que há de unir os homens por um laço fraternal, é uma conseqüência dessa teoria de Platão sobre o amor universal, como lei da Natureza. Tendo dito Sócrates que “o amor não é nem um deus, nem um mortal, mas um grande demônio”, isto é, um grande Espírito que preside ao amor universal, essa proposição lhe foi imputada como crime. 

XVII. A virtude não pode ser ensinada; vem por dom de Deus aos que a possuem. É quase a doutrina cristã sobre a graça; mas, se a virtude é um dom de Deus, é um favor e, então, pode perguntar-se por que não é concedida a todos. Por outro lado, se é um dom, carece de mérito para aquele que a possui. O Espiritismo é mais explícito, dizendo que aquele que possui a virtude a adquiriu por seus esforços, em existências sucessivas, despojando-se pouco a pouco de suas imperfeições.A graça é a força que Deus faculta ao homem de boa vontade para se expungir do mal e praticar o bem. 

XVIII. É disposição natural em todos nós a de nos apercebermos muito menos dos nossos defeitos, do que dos de outrem. Diz o Evangelho: “Vedes a palha que está no olho do vosso próximo e não vedes a trave que está no vosso.” (Cap. X, nos 9 e 10.) 

XIX. Se os médicos são malsucedidos, tratando da maior parte das moléstias, é que tratam do corpo, sem tratarem da alma. Ora, não se achando o todo em bom estado, impossível é que uma parte dele passe bem. O Espiritismo fornece a chave das relações existentes entre a alma e o corpo e prova que um reage incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda para a Ciência. Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta-lhe os meios de as combater. Quando a Ciência levar em conta a ação do elemento espiritual na economia, menos freqüentes serão os seus maus êxitos. 

XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais fazem de mal, do que de bem. Essa sentença de Sócrates fere a grave questão da predominância do mal na Terra, questão insolúvel sem o conhecimento da pluralidade dos mundos e da destinação do planeta terreno, habitado apenas por uma fração mínima da Humanidade. Somente o Espiritismo resolve essa questão, que se encontra explanada aqui adiante, nos capítulos II, III e V. 

XXI. Ajuizado serás, não supondo que sabes o que ignoras. Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de que desconhecem até mesmo os primeiros termos. Platão completa esse pensamento de Sócrates, dizendo: “Tentemos, primeiro, torná-los, se for possível, mais honestos nas palavras; se não o forem, não nos preocupemos com eles e não procuremos senão a verdade. Cuidemos de instruir-nos, mas não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os espíritas com relação aos seus contraditores de boa ou má-fé. Revivesse hoje Platão e acharia as coisas quase como no seu tempo e poderia usar da mesma linguagem. Também Sócrates toparia criaturas que zombariam da sua crença nos Espíritos e que o qualificariam de louco, assim como ao seu discípulo Platão. Foi por haver professado esses princípios que Sócrates se viu ridiculizado, depois acusado de impiedade e condenado a beber cicuta. Tão certo é que, levantando contra si os interesses e os preconceitos que elas ferem, as grandes verdades novas não se podem firmar sem luta e sem fazer mártires.


CAPÍTULO I 

Não vim destruir a lei • 

As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo • Aliança da Ciência e da Religião 

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 

• A nova era1. 

Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os profetas: não os vim destruir, mas cumpri-los: – porquanto, em verdade vos digo que o céu e a Terra não passarão, sem que tudo o que se acha na lei esteja perfeitamente cumprido, enquanto reste um único iota e um único ponto. (S. MATEUS, 5:17 e 18.) MOISÉS 2. Na lei moisaica, há duas partes distintas: a lei de Deus, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é invariável; a outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo. A lei de Deus está formulada nos dez mandamentos seguintes: 

I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da servidão. Não tereis, diante de mim, outros deuses estrangeiros. – Não fareis imagem esculpida, nem figura alguma do que está em cima do céu, nem embaixo na Terra, nem do que quer que esteja nas águas sob a terra. Não os adorareis e não lhes prestareis culto soberano.1 

II. Não pronunciareis em vão o nome do Senhor, vosso Deus. 

III. Lembrai-vos de santificar o dia do sábado. 

IV. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará. 

V. Não mateis. 

VI. Não cometais adultério.

VII. Não roubeis. 

VIII. Não presteis testemunho falso contra o vosso próximo. 

IX. Não desejeis a mulher do vosso próximo. 

X. Não cobiceis a casa do vosso próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu asno, nem qualquer das coisas que lhe pertençam.

É de todos os tempos e de todos os países essa lei e tem, por isso mesmo, caráter divino. Todas as outras são leis que Moisés decretou, obrigado que se via a conter, pelo temor, um povo de seu natural turbulento e indisciplinado, no qual tinha ele de combater arraigados abusos e preconceitos, adquiridos durante a escravidão do Egito. Para imprimir autoridade às suas leis, houve de lhes atribuir origem divina, conforme o fizeram todos os legisladores dos povos primitivos. A autoridade do homem precisava apoiar-se na autoridade de Deus; mas, só a idéia de um Deus terrível podia impressionar criaturas ignorantes, em as quais ainda pouco desenvolvidos se encontravam o senso moral e o sentimento de uma justiça reta. É evidente que aquele que incluíra, entre os seus mandamentos, este: “Não matareis; não causareis dano ao vosso próximo”, não poderia contradizer-se, fazendo da exterminação um dever. As leis moisaicas, propriamente ditas, revestiam, pois, um caráter essencialmente transitório.


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1 Allan Kardec cita a parte mais importante do primeiro mandamento, e deixa de transcrever as seguintes frases: “... porque eu, o Senhor vosso Deus, sou Deus zeloso, que puno a iniqüidade dos pais nos filhos, na terceira e na quarta gerações daqueles que me aborrecem, e uso de misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Êxodo, 20:5 e 6.) Nas traduções feitas pelas Igrejas cató1ica e protestantes, essa parte do mandamento foi truncada para harmonizá-la com a doutrina da encarnação única da alma. Onde está “na terceira e na quarta gerações”, conforme a tradução Brasileira da Bíblia, a Vulgata Latina (in tertiam et quartam generationem), a tradução de Zamenhof (en la tria kaj kvara generacioj), mudaram o texto para “até à terceira e quarta gerações”. Esses textos truncados que aparecem na tradução da Igreja Anglicana, na Católica de Figueiredo, na Protestante de Almeida e outras, tornam monstruosa a justiça divina, pois que filhos, netos, bisnetos, tetranetos inocentes teriam de ser castigados pelo pecado dos pais, avós, bisavós, tetravós. Foi uma infeliz tentativa de acomodação da Lei à vida única. – A Editora da FEB, 1947. O texto certo que, por mercê de Deus, já está reproduzido pelas edições recentíssimas a que nos referimos – traduções Brasileira e de Zamenhof –, que conferem com S. Jerônimo, mostra que a Lei ensina veladamente a reencarnação e as expiações e provas. Na primeira e na segunda gerações, como contemporâneos de seus filhos e netos, o Espírito culpado ainda não reencarnou, mas, um pouco mais tarde – na terceira e quarta gerações – já ele voltou e recebe as conseqüências de suas faltas. Assim, o culpado mesmo, e não outrem, paga sua dívida. Logo, tem-se de excluir a 1ª e 2ª gerações e expressar “na” 3ª e 4ª, como realmente é o original. Achamos conveniente acrescentar aqui esta nota, para facilitar a compreensão do estudioso que confronte a sua tradução da Bíblia com a citação do Mestre. – A Editora da FEB, 1947.

O CRISTO 

3. Jesus não veio destruir a lei, isto é, a lei de Deus; veio cumpri-la, isto é, desenvolvê-la, dar-lhe o verdadeiro sentido e adaptá-la ao grau de adiantamento dos homens. Por isso, é que se nos depara, nessa lei, o princípio dos deveres para com Deus e para com o próximo, base da sua doutrina. Quanto às leis de Moisés, propriamente ditas, ele, ao contrário, as modificou profundamente, quer na substância, quer na forma. Combatendo constantemente o abuso das práticas exteriores e as falsas interpretações, por mais radical reforma não podia fazê-las passar, do que as reduzindo a esta única prescrição: “Amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo”, e acrescentando: aí estão a lei toda e os profetas. Por estas palavras: “O céu e a Terra não passarão sem que tudo esteja cumprido até o último iota”, quis dizer Jesus ser necessário que a lei de Deus tivesse cumprimento integral, isto é, fosse praticada na Terra inteira, em toda a sua pureza, com todas as suas ampliações e conseqüências. Efetivamente, de que serviria haver sido promulgada aquela lei, se ela devesse constituir privilégio de alguns homens, ou, sequer, de um único povo? Sendo filhos de Deus todos os homens, todos, sem distinção nenhuma, são objeto da mesma solicitude. 4. Mas, o papel de Jesus não foi o de um simples legislador moralista, tendo por exclusiva autoridade a sua palavra. Cabia-lhe dar cumprimento às profecias que lhe anunciaram o advento; a autoridade lhe vinha da natureza excepcional do seu Espírito e da sua missão divina. Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida não é a que transcorre na Terra e sim a que é vivida no reino dos céus; viera ensinar-lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se reconciliarem com Deus e de pressentirem esses meios na marcha das coisas por vir, para a realização dos destinos humanos. Entretanto, não disse tudo, limitando-se, respeito a muitos pontos, a lançar o gérmen de verdades que, segundo ele próprio o declarou, ainda não podiam ser compreendidas. Falou de tudo, mas em termos mais ou menos implícitos. Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se fazia que novas idéias e novos conhecimentos lhes trouxessem a chave indispensável, idéias que, porém, não podiam surgir antes que o espírito humano houvesse alcançado um certo grau de madureza. A Ciência tinha de contribuir poderosamente para a eclosão e o desenvolvimento de tais idéias. Importava, pois, dar à Ciência tempo para progredir.

O ESPIRITISMO 

5. O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lo mostra, não mais como coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma imensidade de fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso, relegados para o domínio do fantástico e do maravilhoso. É a essas relações que o Cristo alude em muitas circunstâncias e daí vem que muito do que ele disse permaneceu ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o auxílio da qual tudo se explica de modo fácil. 

6. A lei do Antigo Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento tem-na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidão inumerável de intermediários. É, de certa maneira, um ser coletivo, formado pelo conjunto dos seres do mundo espiritual, cada um dos quais traz o tributo de suas luzes aos homens, para lhes tornar conhecido esse mundo e a sorte que os espera. 

7. Assim como o Cristo disse: “Não vim destruir a lei, porém cumpri-la”, também o Espiritismo diz: “Não venho destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução.” Nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas, desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que preside, conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o reino de Deus na Terra. 

ALIANÇA D A CIÊNCIA E D A RELIGIÃO 

8. A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se. Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto Deus não pode pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que se julgou existir entre essas duas ordens de idéias provém apenas de uma observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância. São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual e em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que são, apoiando-se uma na outra e marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a irresistível lógica dos fatos. A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem. É toda uma revolução que neste momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as conseqüências: acarretará para as relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de Deus.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 

A NOVA ERA 

9. Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos. O povo hebreu foi o instrumento de que se serviu Deus para se revelar por Moisés e pelos profetas, e as vicissitudes por que passou esse povo destinavam-se a chamar a atenção geral e a fazer cair o véu que ocultava aos homens a divindade. Os mandamentos de Deus, dados por intermédio de Moisés, contêm o gérmen da mais ampla moral cristã. Os comentários da Bíblia, porém, restringiam-lhe o sentido, porque, praticada em toda a sua pureza, não na teriam então compreendido. Mas, nem por isso os dez mandamentos de Deus deixavam de ser um como frontispício brilhante, qual farol destinado a clarear a estrada que a Humanidade tinha de percorrer. A moral que Moisés ensinou era apropriada ao estado de adiantamento em que se encontravam os povos que ela se propunha regenerar, e esses povos, semi-selvagens quanto ao aperfeiçoamento da alma, não teriam compreendido que se pudesse adorar a Deus de outro modo que não por meio de holocaustos, nem que se devesse perdoar a um inimigo. Notável do ponto de vista da matéria e mesmo do das artes e das ciências, a inteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e não se houvera convertido sob o império de uma religião inteiramente espiritual. Era-lhes necessária uma representação semimaterial, qual a que apresentava então a religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam aos sentidos, do mesmo passo que a idéia de Deus lhes falava ao espírito. O Cristo foi o iniciador da mais pura, da mais sublime moral, da moral evangélico-cristã, que há de renovar o mundo, aproximar os homens e torná-los irmãos; que há de fazer brotar de todos os corações a caridade e o amor do próximo e estabelecer entre os humanos uma solidariedade comum; de uma moral, enfim, que há de transformar a Terra, tornando-a morada de Espíritos superiores aos que hoje a habitam. É a lei do progresso, a que a Natureza está submetida, que se cumpre, e o Espiritismo é a alavanca de que Deus se utiliza para fazer que a Humanidade avance. São chegados os tempos em que se hão de desenvolver as idéias, para que se realizem os progressos que estão nos desígnios de Deus. Têm elas de seguir a mesma rota que percorreram as idéias de liberdade, suas precursoras. Não se acredite, porém, que esse desenvolvimento se efetue sem lutas. Não; aquelas idéias precisam, para atingirem a maturidade, de abalos e discussões, a fim de que atraiam a atenção das massas. Uma vez isso conseguido, a beleza e a santidade da moral tocarão os espíritos, que então abraçarão uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e descerra as portas da felicidade eterna. Moisés abriu o caminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a concluirá. – Um Espírito israelita. (Mulhouse, 1861.)

10. Um dia, Deus, em sua inesgotável caridade, permitiu que o homem visse a verdade varar as trevas. Esse dia foi o do advento do Cristo. Depois da luz viva, voltaram as trevas. Após alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente se perdia. Então, semelhantemente aos profetas do Antigo Testamento, os Espíritos se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus fundamentos; reboará o trovão. Sede firmes! O Espiritismo é de ordem divina, pois que se assenta nas próprias leis da Natureza, e estai certos de que tudo o que é de ordem divina tem grande e útil objetivo. O vosso mundo se perdia; a Ciência, desenvolvida à custa do que é de ordem moral, mas conduzindo-vos ao bem-estar material, redundava em proveito do espírito das trevas. Como sabeis, cristãos, o coração e o amor têm de caminhar unidos à Ciência. O reino do Cristo, ah! passados que são dezoito séculos e apesar do sangue de tantos mártires, ainda não veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos quer salvar. Tudo é fácil àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria. Sim, meus filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo-lo dizem sobejamente; dobrai-vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes derribados, isto é, preparai-vos e não imiteis as virgens loucas, que foram apanhadas desprevenidas à chegada do esposo. A revolução que se apresta é antes moral do que material. Os grandes Espíritos, mensageiros divinos, sopram a fé, para que todos vós, obreiros esclarecidos e ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de areia; mas, sem grãos de areia, não existiriam as montanhas. Assim, pois, que estas palavras – “Somos pequenos” – careçam para vós de significação. A cada um a sua missão, a cada um o seu trabalho. Não constrói a formiga o edifício de sua república e imperceptíveis animálculos não elevam continentes? Começou a nova cruzada. Apóstolos da paz universal, que não de uma guerra, modernos São Bernardos, olhai e marchai para frente; a lei dos mundos é a do progresso. – Fénelon. (Poitiers, 1861.)

11. Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo. Manifesta-se quase por toda parte. A razão disso, encontramo-la na vida desse grande filósofo cristão. Pertence ele à vigorosa falange dos Pais da Igreja, aos quais deve a cristandade seus mais sólidos esteios. Como vários outros, foi arrancado ao paganismo, ou melhor, à impiedade mais profunda, pelo fulgor da verdade. Quando, entregue aos maiores excessos, sentiu em sua alma aquela singular vibração que o fez voltar a si e compreender que a felicidade estava alhures, que não nos prazeres enervantes e fugitivos; quando, afinal, no seu caminho de Damasco, também lhe foi dado ouvir a santa voz a clamar-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” exclamou: “Meu Deus! Meu Deus! perdoai-me, creio, sou cristão!” E desde então tornou-se um dos mais fortes sustentáculos do Evangelho. Podem ler-se, nas notáveis confissões que esse eminente espírito deixou, as características e, ao mesmo tempo, proféticas palavras que proferiu, depois da morte de Santa Mônica: Estou convencido de que minha mãe me virá visitar e dar conselhos, revelando-me o que nos espera na vida futura. Que ensinamento nessas palavras e que retumbante previsão da doutrina porvindoura! Essa a razão por que hoje, vendo chegada a hora de divulgar-se a verdade que ele outrora pressentira, se constituiu seu ardoroso disseminador e, por assim dizer, se multiplica para responder a todos os que o chamam. – Erasto, discípulo de S. Paulo. (Paris, 1863.) 

Nota – Dar-se-á venha Santo Agostinho demolir o que edificou? Certamente que não. Como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o que não via enquanto homem. Liberta, sua alma entrevê claridades novas, compreende o que antes não compreendia. Novas idéias lhe revelaramo sentido verdadeiro de algumas sentenças. Na Terra, apreciava as coisas de acordo com os conhecimentos que possuía; desde que, porém, uma nova luz lhe brilhou, pôde apreciá-las mais judiciosamente. Assim é que teve de abandonar a crença, que alimentara, nos Espíritos íncubos e súcubos e o anátema que lançara contra a teoria dos antípodas. Agora que o Cristianismo se lhe mostra em toda a pureza, pode ele, sobre alguns pontos, pensar de modo diverso do que pensava quando vivo, sem deixar de ser um apóstolo cristão. Pode, sem renegar a sua fé, constituir-se disseminador do Espiritismo, porque vê cumprir-se o que fora predito. Proclamando-o, na atualidade, outra coisa não faz senão conduzir-nos a uma interpretação mais acertada e lógica dos textos. O mesmo ocorre com outros Espíritos que se encontram em posição análoga.

CAPÍTULO I I 

Meu reino não é deste mundo 

1. Pilatos, tendo entrado de novo no palácio e feito vir Jesus à sua presença, perguntou-lhe: És o rei dos judeus?

 – Respondeu-lhe Jesus: Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus; mas, o meu reino ainda não é aqui. Disse-lhe então Pilatos: És, pois, rei? – Jesus lhe respondeu: Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz. (S. JOÃO, 18:33, 36 e 37.) 

• A vida futura 

• A realeza de Jesus 

• O ponto de vista 

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 

• Uma realeza terrestre

1. Pilatos, tendo entrado de novo no palácio e feito vir Jesus à sua presença, perguntou-lhe: És o rei dos judeus? 

– Respondeu-lhe Jesus: Meu reino não é deste mundo. 

Se o meu reino fosse deste mundo, a minha gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus; mas, o meu reino ainda não é aqui. 

Disse-lhe então Pilatos: És, pois, rei? 

– Jesus lhe respondeu: Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. 

Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz. (S. JOÃO, 18:33, 36 e 37.)

A VIDA FUTURA 

2. Por essas palavras, Jesus claramente se refere à vida futura, que ele apresenta, em todas as circunstâncias, como a meta a que a Humanidade irá ter e como devendo constituir objeto das maiores preocupações do homem na Terra. 

Todas as suas máximas se reportam a esse grande princípio. 

Com efeito, sem a vida futura, nenhuma razão de ser teria a maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que os que não crêem na vida futura, imaginando que ele apenas falava na vida presente, não os compreendem, ou os consideram pueris. 

Esse dogma pode, portanto, ser tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos primeiros lugares a frente desta obra. 

É que ele tem de ser o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e se mostra de acordo com a justiça de Deus. 

3. Apenas idéias muito imprecisas tinham os judeus acerca da vida futura. 

Acreditavam nos anjos, considerando-os seres privilegiados da Criação; não sabiam, porém, que os homens podem um dia tornar-se anjos e partilhar da felicidade destes. 

Segundo eles, a observância das leis de Deus era recompensada com os bens terrenos, com a supremacia da nação a que pertenciam, com vitórias sobre os seus inimigos. 

As calamidades públicas e as derrotas eram o castigo da desobediência àquelas leis. Moisés não pudera dizer mais do que isso a um povo pastor e ignorante, que precisava ser tocado, antes de tudo, pelas coisas deste mundo. 

Mais tarde, Jesus lhe revelou que há outro mundo, onde a justiça de Deus segue o seu curso. 

É esse o mundo que ele promete aos que cumprem os mandamentos de Deus e onde os bons acharão sua recompensa. 

Aí o seu reino; lá é que ele se encontra na sua glória e para onde voltaria quando deixasse a Terra. Jesus, porém, conformando seu ensino com o estado dos homens de sua época, não julgou conveniente dar-lhes luz completa, percebendo que eles ficariam deslumbrados, visto que não a compreenderiam. 

Limitou-se a, de certo modo, apresentar a vida futura apenas como um princípio, como uma lei da Natureza a cuja ação ninguém pode fugir. 

Todo cristão, pois, necessariamente crê na vida futura; mas, a idéia que muitos fazem dela é ainda vaga, incompleta e, por isso mesmo, falsa em diversos pontos. 

Para grande número de pessoas, não há, a tal respeito, mais do que uma crença, balda de certeza absoluta, donde as dúvidas e mesmo a incredulidade. 

O Espiritismo veio completar, nesse ponto, como em vários outros, o ensino do Cristo, fazendo-o quando os homens já se mostram maduros bastante para apreender a verdade. 

Com o Espiritismo, a vida futura deixa de ser simples artigo de fé, mera hipótese; torna-se uma realidade material, que os fatos demonstram, porquanto são testemunhas oculares os que a descrevem nas suas fases todas e em todas as suas peripécias, e de tal sorte que, além de impossibilitarem qualquer dúvida a esse propósito, facultam à mais vulgar inteligência a possibilidade de imaginá-la sob seu verdadeiro aspecto, como toda gente imagina um país cuja pormenorizada descrição leia. 

Ora, a descrição da vida futura é tão circunstanciadamente feita, são tão racionais as condições, ditosas ou infortunadas, da existência dos que lá se encontram, quais eles próprios pintam, que cada um, aqui, a seu mau grado, reconhece e declara a si mesmo que não pode ser de outra forma, porquanto, assim sendo, patente fica a verdadeira justiça de Deus.

A REALEZA D E JESUS 

4. Que não é deste mundo o reino de Jesus todos compreendem, mas, também na Terra não terá ele uma realeza? Nem sempre o título de rei implica o exercício do poder temporal. 

Dá-se esse título, por unânime consenso, a todo aquele que, pelo seu gênio, ascende à primeira plana numa ordem de idéias quaisquer, a todo aquele que domina, o seu século e influi sobre o progresso da Humanidade. 

É nesse sentido que se costuma dizer: o rei ou príncipe dos filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores, etc. 

Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade, não revela, muitas vezes, preponderância bem maior do que a que cinge a coroa real? 

Imperecível é a primeira, enquanto esta outra é joguete das vicissitudes; as gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem, ao passo que, por vezes, amaldiçoam a outra. 

Esta, a terrestre, acaba com a vida; a realeza moral se prolonga e mantém o seu poder, governa, sobretudo, após a morte. 

Sob esse aspecto não é Jesus mais poderoso rei do que os potentados da Terra? 

Razão, pois, lhe assistia para dizer a Pilatos, conforme disse: “Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo.”  

O PONTO D E VISTA

5. A idéia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes conseqüências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. 

Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. 

As vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, por sabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso. 

À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se abre para o nada e torna-se a que dá para a libertação, pela qual entra o exilado numa mansão de bem-aventurança e de paz. 

Sabendo temporária e não definitiva a sua estada no lugar onde se encontra, menos atenção presta às preocupações da vida, resultando-lhe daí uma calma de espírito que tira àquela muito do seu amargor. 

Pelo simples fato de duvidar da vida futura, o homem dirige todos os seus pensamentos para a vida terrestre. 

Sem nenhuma certeza quanto ao porvir, dá tudo ao presente. 

Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra, torna-se qual a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. 

E não há o que não faça para conseguir os únicos bens que se lhe afiguram reais. 

A perda do menor deles lhe ocasiona causticante pesar; um engano, uma decepção, uma ambição insatisfeita, uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos tormentos, que lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo-se ele, desse modo, a si próprio, verdadeira tortura de todos os instantes. 

Colocando o ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar mesmo em que ele aí se encontra, vastas proporções assume tudo o que o rodeia. 

O mal que o atinja, como o bem que toque aos outros, grande importância adquire aos seus olhos. 

Àquele que se acha no interior de uma cidade, tudo lhe parece grande: assim os homens que ocupem as altas posições, como os monumentos. 

Suba ele, porém, a uma montanha, e logo bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. 

É o que sucede ao que encara a vida terrestre do ponto de vista da vida futura; a Humanidade, tanto quanto as estrelas do firmamento, perde-se na imensidade. 

Percebe então que grandes e pequenos estão confundidos, como formigas sobre um montículo de terra; que proletários e potentados são da mesma estatura, e lamenta que essas criaturas efêmeras a tantas canseiras se entreguem para conquistar um lugar que tão pouco as elevará e que por tão pouco tempo conservarão. 

Daí se segue que a importância dada aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura. 

6. Se toda a gente pensasse dessa maneira, dir-se-ia, tudo na Terra periclitaria, porquanto ninguém mais se iria ocupar com as coisas terrenas. 

Não; o homem, instintivamente, procura o seu bem-estar e, embora certo de que só por pouco tempo permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o melhor ou o menos mal que lhe seja possível. 

Ninguém há que, dando com um espinho debaixo de sua mão, não a retire, para se não picar. 

Ora, o desejo do bem-estar força o homem a tudo melhorar, impelido que é pelo instinto do progresso e da conservação, que está nas leis da Natureza. 

Ele, pois, trabalha por necessidade, por gosto e por dever, obedecendo, desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na Terra. 

Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao presente mais do que relativa importância e facilmente se consola dos seus insucessos, pensando no destino que o aguarda. 

Deus, conseguintemente, não condena os gozos terrenos; condena, sim, o abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma. 

Contra tais abusos é que se premunem os que a si próprios aplicam estas palavras de Jesus: 

Meu reino não é deste mundo. 

Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se ao rico que perde sem emoção uma pequena soma. 

Aquele cujos pensamentos se concentram na vida terrestre assemelha-se ao pobre que perde tudo o que possui e se desespera.

7. O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga horizontes novos. 

Em vez dessa visão, acanhada e mesquinha, que o concentra na vida atual, que faz do instante que vivemos na Terra único e frágil eixo do porvir eterno, ele, o Espiritismo, mostra que essa vida não passa de um elo no harmonioso e magnífico conjunto da obra do Criador. 

Mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os mundos. 

Faculta assim uma base e uma razão de ser à fraternidade universal, enquanto a doutrina da criação da alma por ocasião do nascimento de cada corpo torna estranhos uns aos outros todos os seres. 

Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que inexplicável se apresenta, desde que se considere apenas um ponto. 

Esse conjunto, ao tempo do Cristo, os homens não o teriam podido compreender, motivo por que ele reservou para outros tempos o fazê-lo conhecido.


INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS 


UM A REALEZA TERRESTRE

 

8. Quem melhor do que eu pode compreender a verdade destas palavras de Nosso Senhor: 

“O meu reino não é deste mundo”? 

O orgulho me perdeu na Terra. 

Quem, pois, compreenderia o nenhum valor dos reinos da Terra, se eu o não compreendia? 

Que trouxe eu comigo da minha realeza terrena? 

Nada, absolutamente nada. 

E, como que para tornar mais terrível a lição, ela nem sequer me acompanhou até o túmulo! 

Rainha entre os homens, como rainha julguei que penetrasse no reino dos céus! 

Que desilusão! 

Que humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi acima de mim, mas muito acima, homens que eu julgava insignificantes e aos quais desprezava, por não terem sangue nobre! 

Oh! como então compreendi a esterilidade das honras e grandezas que com tanta avidez se reqüestam na Terra! 

Para se granjear um lugar neste reino, são necessárias a abnegação, a humildade, a caridade em toda a sua celeste prática, a benevolência para com todos. 

Não se vos pergunta o que fostes, nem que posição ocupastes, mas que bem fizestes, quantas lágrimas enxugastes. 

Oh! Jesus, tu o disseste, teu reino não é deste mundo, porque é preciso sofrer para chegar ao céu, de onde os degraus de um trono a ninguém aproximam. 

A ele só conduzem as veredas mais penosas da vida. 

Procurai-lhe, pois, o caminho, através das urzes e dos espinhos, não por entre as flores. 

Correm os homens por alcançar os bens terrestres, como se os houvessem de guardar para sempre. Aqui, porém, todas as ilusões se somem. 

Cedo se apercebem eles de que apenas apanharam uma sombra e desprezaram os únicos bens reais e duradouros, os únicos que lhes aproveitam na morada celeste, os únicos que lhes podem facultar acesso a esta. 

Compadecei-vos dos que não ganharam o reino dos céus; ajudai-os com as vossas preces, porquanto a prece aproxima do Altíssimo o homem; é o traço de união entre o céu e a Terra: não o esqueçais. 

– Uma Rainha de França. (Havre, 1863.) (Do Livro O Evangelho Segundo O Espiritismo - Allan Kardec)